“Noite Crônica”
“O
GATO ESTÁ DORMINDO”
O gato está
dormindo sob a cômoda e curiosamente pousou a cabeça debaixo da proa de uma
caravela de madeira, feita por um artista popular de Salvador. A caravela é
opaca e ressequida, estiliza o desenho real num arremedo de proporções que logo
concretiza o brinquedo. O gato é macio, de um cinza estriado, como o mais comum
dos gatos, mas repousa como um ídolo, como aqueles ídolos pachorrentos e bem
nutridos que um dia eu vi nos templos japoneses. O gato parece nem respirar,
tão profundo e perfeito é seu sono. Algo parecido com a morte, sem o terrífico
vazio dos corpos sem alma.
Observo atentamente
este gato cujo repouso é divino, e contraponho o outro lado tão humano do
animal - sensual, interesseiro, meio agressivo no afeto, desconfiado e dono de
si mesmo, mais do que tudo. No entanto, o gato rescende a uma misteriosa
espiritualidade, como os ídolos que falei antes. Passa quase imperceptível pelo
nosso espaço, não atropela as coisas, tem o andar macio e cauteloso, é ágil
como o maior dançarino do mundo, quando trata de se defender do agressor. Não é
fácil amar e entender essa espécie, muita gente superficialmente liga a sua
imagem às nações satânicas. Tampouco é um ser disponível. O gato se impõe -
este que agora contemplo e tento desenhar instalou-se na minha vida de forma
sub-reptícia e sagaz. Construiu o nosso interesse sobre ele, sobrevivente que
foi de uma família felina que a caseira atraiu com leite e sobras de comida.
Veio a mãe, porque tinha fome, e a casa estava aberta de comida. Deu cria e
sumiu; assustada por um de nossos cachorros que sustenta o preconceito da velha
inimizade entre cão e gato. Das crias, as fêmeas foram dadas a terceiros, este
macho que chamamos Rufino foi ficando. Aprendeu a sobreviver no ambiente
perigoso para ele. Quando o cão tradicional chega, ele se empoleira numa viga
que sustenta o telhado da casa e, ainda como um ídolo, assume impassível a sua
segurança, enquanto o cão, martirizado de não alcançá-lo, chora e se desgasta
em saltos ineficazes. Quando acendo o fogo da lareira de roça, ele se aproxima
e namora as chamas. Seus olhos cintilam, esfrega-se nas minhas pernas, eu pressinto
que ele está feliz.
Gosto de apalpá-lo,
para sentir a natureza de material única. É macio e flexível, entre o sólido e
o líquido denso, parece não ter vísceras. Se o contato é desajeitado, projeta
suas unhas, e é capaz de ferir. Diante do fogo ele se porta como um oficiante.
Transpassa as brasas com o olhar, contorna o calor com evidente atração e, no
fim da noite, ou no dia seguinte, caminha sobre o borralho, como o personagem da
lenda.
Agora acordou.
Surpreendi-o me espreitando por detrás do cordame das velas do barco. Enquanto
escrevi esta frase ele sumiu, como um fantasma, de tal forma imperceptível que
chego a duvidar que tivesse existido realmente. De repente vai se insinuar,
quando melhor lhe aprouver, indiferente à minha inquietação. Vai avaliar a área,
e se instalar no lugar mais certo. Vai esperar a noite e o fogo, se possível
vai se enfiar sob as nossas cobertas, procurando sempre o calor. Então, como
coisa morta de tão integralmente embriagado de repouso, curtirá o silêncio
desativado da casa. Nossos sonhos, deslizantes na sombra, arrepiarão seu pelo
como um toque imantado.
Crônica de Walmir Ayala
(1933-1991)
Escritor e poeta gaúcho.
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Esta
crônica foi enviada por Luciana C. Bastos, colaboradora de UBAV-Brasil.