É sempre um prazer lembrar em nosso espaço, destinado a uma boa crônica, o nome da
escritora gaúcha Martha Medeiros. Cronista de palavra fácil e sensível. Capaz
de encontrar em pequenos detalhes do dia a dia uma boa história pra contar. Na
crônica de hoje ela fala da importância de um objeto de cozinha, a mesa. Um
lugar especial que todos têm em suas casas e onde se vive momentos importantes.
Achei interessante socializar essa passagem do livro ‘Felicidade Crônica’, da autoria de ‘Martha
Medeiros’ e publicado pela ‘Editora L & PM’. Aproveitem o dia começando
bem e lendo uma deliciosa crônica.
Tim-Tim!
Neo Cirne
A
MESA DA COZINHA
- Crônica de
Martha Medeiros -
A mesa da cozinha é o local sagrado das
conversas durante a madrugada, quando os irmãos chegam da balada com a fissura
por um gole de Coca-Cola e com histórias saindo pela boca: com quem ficaram ou
não ficaram, o trajeto que fizeram para driblar a blitz, o preço da cerveja, e
aí as amenidades evoluem para a filosofia, a necessidade de extrair da vida uma
essência, a tentativa de escapar da insignificância, até que o dia começa a
clarear e o cansaço avisa que é hora de ir pra cama.
Para alguns casais, a
mesa da cozinha já serviu de cama, aliás.
A mesa da cozinha
ouviu confissões de amigas que juraram guardar segredo, mas não conseguiram. O
amante, a traição, a culpa, o nunca mais. A mesa escuta e não espalha,
reconhece a inocência das fraquezas alheias e se sente honrada por ser
confidente de tantas vidas.
A mesa da cozinha
escutou o que os convidados não comentaram na sala, viu estranhos abrirem a
geladeira atrás de algo mais substancial que canapés, suportou o peso de quem
resolveu sentar sobre ela para fumar um cigarro antes de voltar para o
burburinho da festa.
A mesa da cozinha já foi
o cenário de toda espécie de solidão. Mas também de encontros. Viu o casal de
namorados preparar, sem receita, seu primeiro salmão ao molho de manga, viu o
menino nervoso abrir a sua primeira garrafa de vinho para uma menina não menos
nervosa, viu um beijo secreto entre primos cuja família comemorava o Natal em
torno da árvore, viu o marido se declarar para a esposa viciada em grifes ao
surpreendê-la com um simples avental amarrado em torno da cintura.
A mesa da cozinha já
viu a mãe preparar a primeira mamadeira às três da manhã, com cara de sono e
felicidade. E o pai da criança, a caminho da área de serviço, segurando uma
fralda suja com a expressão de nojo, mas também de orgulho. A mesa da cozinha
viu a funcionária sentar no banquinho e, durante uma trégua entre um suflê e um
pavê exigido pela patroa, acariciar a sua primeira carteira de trabalho.
A mesa da cozinha viu
o cachorro xeretar lata de lixo e o gato lamber os restos que sobraram da louça
no jantar.
A mesa da cozinha viu
a dona de casa tentar escrever num diário, coisas que ela sente e não tem com
quem dividir, a não ser com a luz amarelada do abajur.
A mesa da cozinha
testemunhou lágrimas que foram secadas com pano de prato. A mesa da cozinha
possui manchas que contam histórias. A mesa da cozinha tem um pé frouxo que
ninguém se lembra de aparafusar. A mesa da cozinha já amparou carteados, velas
acesas em dia de temporal, cinzeiros abarrotados, a roupa passada e dobrada
antes de ir pra gaveta.
A mesa da cozinha viu
tudo.
(Escrito por Martha
Medeiros em 26 de maio de 2013)